Vale Central do Chile: pura generosidade


O vale Central é a maior região do Chile dedicada ao cultivo de uvas para a produção de vinhos, se estende por mais de 350 quilômetros. No vale Central é onde estão as plantações mais antigas e tradicionais do país, e está fracionado em quatro importantes subvales: Maipo, Rapel, Curicó e Maule. Tem plantações de parreiras na parte plana e fértil do vale, e parreiras nos piedemonte das montanhas das Cordilheiras dos Andes e da Costa. Tem plantações nas ladeiras das montanhas que atravessam o vale e plantações em varandas formadas por deslizamentos. As diferenças de clima e solo nesses quatro subvales são bem marcadas, e se notam ainda mais de leste a oeste [da Cordilheira ao oceano Pacífico] do que de norte a sul.

O vale Central é a zona mais povoada do Chile e onde se encontra Santiago, a capital. As condições climáticas e o solo fértil do vale são muito favoráveis, além da beleza das suas paisagens, cercada pela presença da majestosa Cordilheira dos Andes. A atividade agrícola e industrial na região do vale Central é forte e incessante e, com relação à vitivinicultura, foi a primeira a reagir às profundas mudanças que aconteceram a partir de 1974, quando foram anuladas as leis que restringiam as plantações de vinhedos e também os altos impostos que eram cobrados para a produção de vinhos.

Vale de Maipo

Foi a generosa bacia do rio Maipo, rica em águas e terras férteis, que os espanhóis escolheram para fundar a cidade de Santiago. O rio nasce na Cordilheira dos Andes, nos pés do vulcão Maipo, e tem uma extensão de 250 quilômetros. É uma corrente de água que atravessa o vale de leste a oeste e em seu percurso recebe águas de outros rios de origem glacial, sendo o Mapocho – o rio que cruza a cidade de Santiago – um dos seus mais importantes afluentes. Em períodos de chuva ou degelo, principalmente no inverno e na primavera, o nível das águas do Maipo cresce consideravelmente, e as suas águas ganham um aspecto turvo, isso porque ele atravessa lugares ricos em cal e recebe as águas do Yeso, o rio que abastece a famosa represa de Embalse el Yeso. Essa água rica em cal e outros minerais talvez seja o principal motivo que marca a diferença dos terruás [combinação de solo, clima, variedade de uva e cuidado humano] do vale de Maipo e que se reflete nos divinos vinhos que nascem entre as suas montanhas.

Maipo é o vale mais urbano e mais prestigiado no mundo por seus notáveis vinhos tintos, principalmente por seus cabernet sauvignon – variedade que representa mais de 50% das plantações, de um total que soma 9.000 hectares. E foi nas ribeiras do rio Maipo que algumas das primeiras variedades francesas e alemãs – cabernet sauvignon, merlot, pinot noir, malbec, riesling e gewurztraminer – foram plantadas, ainda no século XIX. O vale também é berço das mais antigas e tradicionais vinhas do Chile: Concha y Toro, Santa Carolina, Cousiño Macul e Santa Rita. Os seus casarões foram construídos com ladrilhos e uma argamassa de cal e ovos, chamada de cal y canto, e foram inspirados nos modelos franceses. Essas vinhas em algum momento da história estiveram isoladas por seus imensos muros, mas hoje fazem parte da agenda turística da cidade. Essa proximidade das vinhas com a cidade [ou da cidade com as vinhas] tornou Maipo o vale mais urbano do país e também o de mais fácil acesso aos turistas estrangeiros. Dentro e fora dos muros tem muito o que se fazer, visitar e provar: restaurantes, museus, parques, mirantes, observatórios. Além da sua impressionante beleza emoldurada pelas montanhas da Cordilheira dos Andes.

O clima do vale de Maipo é de calor moderado a intenso, com as estações bem marcadas. As chuvas se concentram no inverno e o verão é seco e quente, o que permite que as uvas alcancem uma boa maduração. Outro fator que influencia na qualidade das uvas é a grande variação de temperatura entre o dia e a noite, chegando até 20 graus, e se deve às brisas frescas que baixam do alto das montanhas e refrescam as parreiras e o solo. 

Maipo é o vale que mais sofre com o crescimento urbano, mais precisamente em direção a terrenos que são uma verdadeira joia para a elaboração de vinhos de alta qualidade. É admirável como as vinhas Quebrada Macul, Aquitania, Almaviva e Viñedos Chadwick resistem à venda de suas terras e buscam seguir crescendo e comprando novos terrenos para o cultivo. Na região de Cajón del Maipo tem plantações de chardonnay, sauvignon blanc, syrah e malbec, que sobem as montanhas e chegam até 900 msnm. São variedades que gostam do frio que faz no alto da Cordilheira. Nessa zona o solo está composto principalmente de cinzas vulcânicas, sedimentos fluviais, argila e outros materiais que se desprenderam de montanhas ainda mais altas da Cordilheira dos Andes. A origem desse solo tão rico está relacionada com o período pós-glacial, quando violentos deslizamentos de água misturados com barro e pedras desceram em direção a Santiago. Esses deslizamentos criaram amplas varandas com ótimas características para o cultivo e a elaboração de vinhos ícones de cabernet sauvignon.

O setor batizado de Alto Maipo, acomodado nos pés da Cordilheira, foi reconhecido por sua qualidade e potencial e é nele que estão as vinhas mais tradicionais do país. Mas vale lembrar que o cultivo de uvas para vinhos se desenvolve ao longo de toda a bacia do rio Maipo. Nas localidades de Isla de Maipo e Talagante é onde nascem extraordinários vinhos das uvas syrah, cabernet sauvignon e carmernère.

Vinhas destacadas: Chocalán, Quebrada de Macul, De Martino, Gandolini, Haras de Pirque, Viña Maipo, Odfjell, Pérez Cruz, Santa Ema, Santa Rita, Tarapacá, Undurraga, Willian Fèvre, Chadwick, El Principal, Haras de Pirque, Carmen, Cousiño Macul, Concha y Toro, Don Melchor, La Viña del Señor,  Mujer Andina.


Vale do Rapel | Cachapoal e Colchagua

Esse extenso e fértil vale está fracionado em dois prestigiados subvales: Cachapoal e Colchagua. Os dois somam em torno de 46.000 hectares de plantações, sendo 60% das variedades de uvas tintas.

O vale do Cachapoal está a 115 quilômetros de Santiago, no sentido sul da cidade, e se divide entre as atividades de mineração, cultivo de frutas e de uvas para a produção de vinhos. É um vale novo e antigo ao mesmo tempo, já que plantações muito jovens convivem com velhas parreiras. O rio Cachapoal é quem banha a região, ele nasce em um glacial na Cordilheira dos Andes e percorre 170 quilômetros, recebendo as águas de vários outros rios afluentes. O vale tem plantações no alto das suas montanhas, a quase 1.000 msnm. O clima é de calor moderado, com uma longa estação de seca e chuvas principalmente no inverno, que não passam de 500 mm ao ano. Seus solos pedregosos e com pouco conteúdo orgânico, somados aos ventos frescos que baixam da Cordilheira, estão dando origem a extraordinários vinhos tintos, principalmente da uva cabernet sauvignon e syrah. Peumo é uma das zonas mais notáveis de Cachapoal e onde se cultivam os mais afamados vinhos carmernère do Chile. A variedade se desenvolve de forma excepcional nessa zona, sobre solos profundos de antigas varandas aluviais. Durante o período de crescimento das uvas, os dias são quentes e as noites mais frescas, o que permite um perfeito amadurecimento até o momento da colheita.

Cachapoal segue se desenvolvendo, novas parreiras estão sendo plantadas em ladeiras, e elas tiram proveito dos dias de céu limpo e ensolarado. Em zonas próximas ao litoral, crescem tímidas plantações de variedades brancas como chardonnay e sauvignon blanc, que se beneficiam e agradecem pelo frescor marinho que recebem. Uvas para futuros vinhos, que poderão estampar com muito orgulho o nome Rapel, como a sua Denominação de Origem. 

Vinhas destacadas: Lagar de Bezana, Lapostolle, Los Boldos, Torreón del Paredes, Calyptra, Casas del Toqui, Lagar de Codegua, Los Boldos, San Pedro, Santa Carolina, Trabún, Valle Secreto, Mi Luna.


O vale do Colchagua, nobre vizinho de Cachapoal, é uma zona campesina por tradição. A cultura do vinho em Colchagua começou ainda no século XVI, com a chegada dos colonizadores espanhóis, que trouxeram e plantaram as primeiras parreiras na região. Na época o vinho era usado pelos missionários jesuítas na celebração das missas e também na evangelização. Mas a produção de vinhos de alto nível no vale tomou força somente depois dos anos 1990, com o início da modernização da atividade vitivinícola no país. Colchagua foi o primeiro a elaborar com êxito uma rota do vinho turística e, graças à iniciativa de um grupo de empresários inovadores, a rota foi reconhecida a nível internacional em 2005, como Best Wine Region in the World pela revista Wine Enthusiast. E ainda hoje o vale mantém viva uma surpreendente capacidade de se renovar e de se reinventar, desenvolvendo áreas ainda não exploradas para o cultivo e plantando novas variedades.

O vale é banhado pelas águas do rio Tinguiririca, que nasce na cordilheira e percorre 170 quilômetros até se juntar com o rio Cachapoal, e ambos desaguam em uma represaO vale está delimitado dos seus vizinhos do sul e do norte por cadeias montanhosas transversais: braços de montanhas que descem da cordilheira e formam um corredor que abre caminho para que os ventos do Pacífico cheguem até a coração do vale. No vale prevalece um clima com verões calorosos, secos e prolongados, e invernos moderadamente chuvosos, que alcançam 600 mm ao ano. Os vinhos das uvas cabernet sauvignon, carmernère, syrah e malbec ganharam a fama de maduros e corpulentos. No entanto, vinhos elaborados com uvas mediterrâneas e com uvas brancas de origem costeira vêm sendo reconhecidos e bem recebidos.

Antes do auge que viveu Colchagua na década de 1990, muitos agricultores colchaguinos já vinham de uma longa tradição no cultivo e produção de vinhos, principalmente de vinhos a granel. A chegada de importantes empresários estrangeiros possivelmente foi o motivo da grande mudança que o vale viveu. Hoje, Colchagua está buscando mais qualidade e inovação aos seus vinhos, com plantações em ladeiras e próximas ao setor costeiro, mostrando que não tem solos somente para os prestigiados vinhos tintos, mas também para vinhos brancos frescos, cítricos e minerais.

Vinhas destacadas: Casa Silva, Clos Apalta, Estampa, Hacienda Araucano, Koyle, Lapostolle, Laura Hartwig, Maquis, Misiones de Rengo, Montes, Polkura, Santa Helena, Viu Manent, Bisquertt, Calcu, Estampa, Santa Cruz, Marchigue, Siegel, Sierras de Bellavista, Santa Rita, Concha y Toro, Las Niñas, Ramirana, Ventisquero, Yali, Casa Silva, Terranoble.


Vale de Curicó

Águas negras é o significado do nome Curicó na língua indígena dos Mapuche, tendo eles uma forte ligação com as origens da produção de vinhos no Chile. A vitivinicultura é uma das principais atividades na região, quase desde a sua fundação, em 1743. E foi nos vales curicanos que Miguel Torres, empresário espanhol, se instalou e trouxe a modernização tecnológica que mudaria radicalmente o cenário do país. Graças a ele, hoje a indústria chilena de produção de vinhos está entre uma das mais importantes do mundo. Foi também graças a Miguel Torres a criação da festa de vendimia, no ano de 1987, a primeira realizada no Chile.

O vale de Curicó está a 200 quilômetros de distância de Santiago, no sentido sul da cidade, e já da estrada vemos as suas intermináveis plantações que alcançam os 16.000 hectares. O vale é banhado pelos rios Teno e Lontué, que nascem na Cordilheira dos Andes, percorrem em torno de 100 quilômetros recebendo águas de outros afluentes em seus percursos, antes de se juntarem e formarem o rio Mataquito, o principal rio da região, que percorre mais 95 quilômetros para desembocar na praia de Iloca. O clima no vale é mais úmido em comparação com seus vizinhos Cachapoal e Colchagua, com uma estação seca e bem prolongada, de chuvas principalmente no inverno e que chegam a 700 mm ao ano. O vale também é fracionado da Cordilheira ao mar, com três zonas de características climáticas e solos bem diferentes entre si. Zonas próximas da Cordilheira da Costa, o clima é mais úmido e fresco, tem antigas parreiras das uvas país, semillón e malbec cultivadas em secano [sem regadio]. Já na zona central do vale, o clima é mais caloroso, uma cadeia de montanhas freia os ventos que chegam do Pacífico. E nas zonas piedemonte o clima é menos úmido e com temperaturas moderadas, ideal para vinhos mais frescos e ácidos. 

O cultivo e a produção de vinhos em Curicó já leva mais de 300 anos, mas foi só depois de 1990 que as plantações de uvas para a elaboração de vinhos finos cresceram de forma significativa. Hoje, o vale está focado na busca de novos lugares para criar melhores vinhos. Um exemplo dessa busca é a troca de velhas plantações de chardonnay e sauvignon vert [muitas dessas parreiras plantadas em lugares inadequados] por variedades que se adaptam melhor aos climas e solos da região.

Vinhas destacadas: Requingua, San Pedro, Valdivieso, Puertas, La Junta, AltaCima, Aresti.


Vale do Maule

Maule passou décadas produzindo vinhos em grandes quantidades, deixando de lado a qualidade. Hoje, as suas plantações alcançam um total de 54.000 hectares [incluindo o vale do Curicó, que administrativamente faz parte da região do Maule], o que equivale a quase um terço das plantações de todo o Chile. São 75% de uvas tintas, e a metade dessas plantações é da uva cabernet sauvignon.

A parte sul do vale de Maule está situada a 300 quilômetros de Santiago, região onde as montanhas da Cordilheira dos Andes perdem altura e não passam de 4.000 metros de altitude. Praticamente todo o cultivo do vale se desenvolve em torno da bacia do rio Maule, que nasce na laguna Maule a 2.200 metros de altura. A origem do rio é vulcânica e percorre cerca de 240 quilômetros antes de desembocar no mar, na praia de Constitución.

O vale tem a vantagem da modernidade somada às práticas de cultivo e produção, nascidas ainda no período da colonização espanhola. Isso tem levado muitos vinhateiros e enólogos a enxergar com um novo olhar as suas antigas tradições, as suas velhas parreiras e os seus vinhos especiais – características tão admiráveis e que estão intimamente ligadas a uma forma de vida mais simples e tradicional da região. Os investimentos de capital nacional e estrangeiro, além da imensa vontade de se preservar o incalculável patrimônio da identidade do vinho chileno, prometem grandes benefícios a uma região que está renascendo. 

Da Cordilheira ao mar, além dos diferentes climas e solos que existem em todos os vales do Chile, em Maule também existe uma divisão de zonas mais modernas e outras zonas mais antigas e austeras. Nas zonas mais avançadas em tecnologia, existem vinhas de última geração focadas na elaboração de vinhos de alta qualidade, feitos a partir de variedades finas e jovens, como merlot, carmernère e cabernet sauvignon. Já em outros setores, batizados de secano interior, tem plantações de parreiras antigas das uvas carignan, país e malbec e também parreiras de garnacha e moscatel, a maioria cultivada sem irrigação e com um sistema livre de crescimento.

Uma das mais importantes iniciativas para resgatar o valioso patrimônio das antigas parreiras do secano maulino foi a criação em 2011 da Vigno – uma associação de vinhas que se comprometeram a elaborar vinhos de alta qualidade da uva carignan. A marca Vigno identifica os seus vinhos de maneira similar à de uma Denominação de Origem. A variedade carignan foi trazida da França ao Chile na metade do século XX, como uma forma de melhorar as características da uva país, que entrega vinhos de pouca cor e baixa acidez. Com plantações plenamente maduras, a uva carignan tem alcançado uma expressão única nas terras do Maule. Suas notas de ameixas ácidas e suculentas, seus taninos rústicos e sedutores, seus aromas florais e minerais estão encantando o mundo e proporcionando um notável reconhecimento à iniciativa da associação Vigno. 

Além da iniciativa Vigno, outros vinhateiros estão apostando em experiências na Cordilheira da Costa, com plantações de parreiras que buscam frescor e novas expressões para os seus vinhos de qualidade. Uma das apostas é do espanhol Miguel Torres, num setor chamado Empedrado, perto da cidade de Constitución. Suas plantações em varandas desafiam os fortes ventos costeiros e a voracidade das indústrias florestais, que já cobriram de pinheiros a maior parte dessa zona. No entanto, no caso da vinha Torres, todos os esforços têm valido a pena: seu extraordinário pinot noir Las Terrazas é o melhor exemplo.

O redescobrimento do vale de Maule tem atraído o interesse de diversas vinhas, que disputam a compra das suas apetitosas uvas. Uvas que produzem valiosos vinhos e com uma forte identidade de origem.

Vinhas destacadas: Casa Donoso, Casas Patronales, Cremaschi Furlotti, Viña Aromo, Erasmo, Gilmore, Laberinto, Terranoble, Via Wines, Garage Wine Co, Gonzáles Bastías, La Prometida, Bouchon, De Martino, Undurraga, San Pedro, Odfjell, Luis Felipe Eduwards, Balduzzi.


Crédito das fotos @feriasnochile
Fonte de Estudos: Nas minhas andanças e nas palavras de Harriet Nahworld, Vinos de Chile, Editora Contrapunto